Encontro na noite

ACERCA DO ONIRISMO MÍSTICO DE DALILA PEREIRA DA COSTA


José Rui Teixeira


“Nesta breve ida ao lugar onde viveste uma tua vida,
agora contempla a tua casa em ruínas.”

Dalila Pereira da Costa
‘Encontro na Noite’ [Porto, Lello & Irmão, 1973, p. 10].


Devo a Ângelo Alves o primeiro contacto com Dalila Pereira da Costa. Era aluno da Faculdade de Teologia, em meados da década de 90, quando li, entre outros, ‘O Esoterismo de Fernando Pessoa’, ‘Corografia Sagrada’ e ‘Os Instantes’. Dalila era para mim, certamente em função dessas leituras, não uma pessoa velha, mas antiga. Sabia-a viva e sabia que nascera em 1918, mas a sua idade era algo indistinto. Dalila era antiga. Havia um rumor nos seus escritos, no modo como escrevia, qualquer coisa de remoto e, simultaneamente, um pressentimento de futuro.
Durante esses anos, Dalila mediou a minha relação com a saudade e com a tessitura hierática e telúrica da poesia de Teixeira de Pascoaes. E a intimidade foi crescendo, como uma caixa de ressonância para o silêncio.
Depois afastei-me, por quase dez anos. Dalila permaneceu silente numa estante da minha biblioteca. Fui adiando a possibilidade de conhecê-la pessoalmente, como quem adia um encontro para o qual não se sente preparado. Não tenho qualquer outra explicação para não a ter conhecido pessoalmente. Várias vezes Ângelo Alves e Maria João Reynaud se dispuseram a apresentar-me a Dalila, na sua própria casa, no n.º 444 da Rua 5 de Outubro. Tanto queria tê-la conhecido pessoalmente e não a conheci, e disso só eu sou culpado.
Dalila morreu no dia 2 de março de 2012, dois dias antes de completar 94 anos. Soube da sua morte depois. Dalila morrera, essa mulher-oráculo, tão antiga que a imaginara imune à morte. Nascera para mim antiga, em meados da década de 90, e morrera antiga passados uns quinze anos. Existira antiga, a Dalila, cujo nome próprio – assim mesmo, precedido de artigo definido – é um nome inteiro, substantivo.
Soube mais tarde que a casa da Rua 5 de Outubro, a biblioteca e o espólio literário e epistolar, entre outros bens, deixou-os em herança ao Centro Regional do Porto da Universidade Católica, em cuja Escola das Artes eu então professava. Em novembro de 2012, tendo havido várias tentativas de intrusão em sua casa com o intuito de roubo, integrei a equipa que foi incumbida do resgate da biblioteca e do espólio literário e epistolar, no sentido de impedir um iminente roubo e possível destruição.
Quando entrei na sua casa, na primeira quinzena de novembro, senti apenas a minha ausência, na medida em que era como se a Dalila impregnasse cada recanto, cada objeto, cada estante. Era uma casa habitada.
Fotografámos e identificámos as estantes, depois encaixotámos os livros com a referência da estante; fizemos o mesmo com outros tipos de documentos e objetos e enviámos as caixas para as instalações do Centro Regional do Porto da Universidade Católica. Em três intensos dias, trasladámos a biblioteca da Dalila.
Alguns daqueles livros e objetos estavam no seu lugar como se o habitassem há séculos. Cada coisa no seu lugar. Havia livros cujas capas e páginas estavam entranhadas na madeira das estantes, como se – por um qualquer processo de resiliência – nos livros se pressentissem saudades de ser árvore.
Independentemente do exercício de salvar aquela biblioteca e espólio, ainda hoje me pesa na consciência tê-lo feito. Nenhuma retórica atenua em mim a consciência de profanação e o sentimento de culpa. Pergunto se não teria sido preferível que um fogo esplêndido os tivesse poeticamente consumido. Seja como for, durante três dias ali me detive, como num ofício hierático, adentrado em algo muito antigo, um oráculo silenciado não pela morte, mas pelo próprio silêncio.
Não tínhamos tempo para folhear os livros, nem para analisar qualquer documento. Era outra a prioridade; mas, dentro de um envelope – ou de uma pequena caixa, já não me lembro… – havia umas fotografias que, então, me detiveram e que, depois digitalizei. É certo que tudo me impressionou naquela casa, mas nada me comoveu como essas fotografias, tiradas no verão de 1935, em Afife: ali estava a Dalila, com dezassete anos, refletida na superfície das águas do rio e posando na praia, como se de uma estrela do cinema da década de 30 se tratasse. Fosse por uma evidente fotogenia [enquanto qualidade do que é fotogénico e, simultaneamente, enquanto propriedade de gerar luz], fosse por aquela simpatia da intuição que nos une inexplicavelmente a certas pessoas, dei por mim apaixonado pela Dalila. Eu, que era já íntimo do seu pensamento filosófico e poético, e que a concebera antiga, conhecia-a agora jovem no silêncio de fotografias com quase oitenta anos.
Regressei, então, à sua obra, com o mesmo estremecimento de perenidade e mistério. Mas uma coisa mudara: a Dalila adquirira na minha consciência um outro rosto, o rosto feliz e luminoso da sua juventude.

O Porto foi a sua cidade: onde nasceu, a 4 de março de 1918, onde escolheu viver e onde morreu, no dia 2 de março de 2012, com 94 anos incompletos. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas na Universidade de Coimbra, em 1944. Desde o princípio da década de 70, Dalila Pereira da Costa publicou uma obra que podemos situar na fronteira entre a filosofia e a poesia: mais de trinta títulos que a tornam uma referência incontornável não apenas no âmbito do movimento da Filosofia Portuguesa, mas na História da Filosofia em Portugal, particularmente na sua expressão ensaística, poética e mística.
A sua narrativa biográfica resulta num rumor de omissões intervaladas pelos títulos dos seus livros, pelos nomes dos seus principais interlocutores e por consensuais e encomiásticos epítetos. Mas se sobre a sua vida a informação é escassa, o mesmo não se passa em relação ao seu pensamento e à sua obra, que – apesar de tudo – tem suscitado renovado interesse não apenas no meio académico.
Dalila foi um importante orago nesta sua terra-mãe; teve um séquito discreto, mas fiel; escolheu o silêncio e a solidão de uma interioridade profunda, densificada pela erudição e pela introspeção. Tornou-se a figura matriarcal desse espaço de interseções que foi o movimento da Filosofia Portuguesa, desde Álvaro Ribeiro e José Marinho, a partir de meados da década de 40, tendo Dalila emergido mais tarde.

Depois de ‘O Esoterismo de Fernando Pessoa’ e de ‘A Força do Mundo’ – em 1971 e 1972, respetivamente –, Dalila publica ‘Encontro na Noite’. Este seu terceiro livro reúne textos escritos entre 1961 e 1973. Detenho-me aqui apenas na primeira parte deste livro: «O Anjo» [EnN, pp. 6-53].
Dalila Pereira da Costa tinha 43 anos quando escreveu esse «Jardim do achado e perdido (jardim ocluso)» [pp. 7-8]. O seu princípio é já uma espécie de programa: “… E empurrei a porta que dava para o outro lado” [p. 7]. Será esta a toada desta poesia, ou prosa poética, de natureza onírica: assistiremos ao seu movimento, deixar-nos-emos guiar numa experiência ocasionalmente sinestésica por espaços interiores e exteriores, de um ou do outro lado, entrando ou saindo, mas sempre para dentro de espaços embaçados, aos quais Dalila empresta um intenso rigor descritivo. Há, assim, a porta que se empurra e esse outro lado.
Há um sentido ascensional nas coisas altas – o teto alto, a porta alta, as escadas –, a predominância dos jardins – em que se encorpa a complexidade imagética e simbólica da sua botânica íntima –, os contextos predominantemente aquáticos e esverdeados – a penumbra verde escura, a água a cair, o murmúrio, o verde, as plantas –, as figuras improváveis – como o guardador do jardim que revela o nome do companheiro e desencadeia a ação: “Procurei-o por todos os lados, por todos os cantos, atrás das altas cortinas. Porque ele era o Bem-Amado. Tão precioso. Ah, como só agora o tinha reconhecido?” [p. 7].
Em «Cidade noturna» [p. 9], Dalila assiste – numa espécie de deslocamento do olhar – à alomorfia da cidade, de um estado pétreo, rígido, para um estado quase liquefeito ou aeriforme: as casinhas todas iguais, o pequeno pátio, a escada de alguns degraus, um inglês que, no passeio, se afasta lentamente.
O seu bestiário íntimo é revelado em «O retorno» [pp. 10-11]. Estamos em agosto de 1963 e Dalila tem 45 anos. Uma voz segreda-lhe: “Estão aqui os teus animais amigos da tua casa antiga. Afaga-os depressa. Ouves, este som no ar, triste? É o sinal a chamá-los” [p. 10]. O cão – de corpo delgado, quieto e silêncio –, a águia (ou milhano?) – que dorme, simétrica, dentro de uma caixa redonda de metal. “Mas o terceiro? Eram três. Esqueci-o” [p. 10]. Desce o caminho e os animais desaparecem. Anoitece. A casa – a casa antiga, a casa grande –, o céu escuro do crepúsculo, o portal, as silvas e moitas de ervas bravas, a água escura. Num processo de adentramento onírico no seu mundo interior, três impressivas asserções [p. 10]: “Vida que se vai abandonando neste misto de desespero e desprezo”; “Nesta breve ida ao lugar onde viveste uma tua vida, agora contempla a tua casa em ruínas”; “Tudo tão perto e tão distante”. Dalila escreve para dentro.
Em «A torre» [pp. 12-13] – essa implícita Torre dos Clérigos: alta, tão calada e cheia de mistério –, percebemos que para Dalila “só se conhece uma cidade quando se sonha com ela. E se passou aí a infância. O que é a mesma coisa” [p. 12]. Sonhar com um lugar é o mesmo que habitá-lo na infância, porque conhecer é o mesmo que sonhar, habitar na infância é o mesmo que amar e “conhecimento e amor são uma mesma coisa” [p. 12].
Uma epistemologia onírica perpassa ‘Encontro na Noite’. Em «Sorocaba» [pp. 14-15] adquire uma intensa expressão anamnésica. Dalila está em movimento e profundamente implicada na descrição: “estive”, “vi”, “ia interrogando”, “respondi”, “entrei”, “comecei a chorar”, “vi que estava perdida”, “escondi a cara entre as mãos”. Encontramos uma igrejinha com o campanário, o cemitério minúsculo na vertente do monte, sete judeus a jogar as cartas. Depois entrou numa casa que tinha um escritório igual ao do seu avô – foi então que começou a chorar –: “era o mesmo papel vermelho com grinaldas de rosas ao alto, os mesmos cortinados de veludo verde musgo, a mesma mobília império” [p. 14]. Depois, na rua, percebeu que estava perdida, sentiu vergonha e desonra, sentou-se numa pedra à beira do caminho e escondeu a cara entre as mãos.
Entre o «Primeiro aviso» [p. 16] e «A loucura» [pp. 17-18], encontramos esse “antepassado com rosto de séculos” [p. 16] – que anuncia a vinda iminente dos outros – e aprendemos que se cai na loucura como na morte: “Por querer. Através daquela parede, daquela pele que naquele momento se atravessa. É um abandono, uma entrega” [p. 17]. Entre um e o outro texto, a casa, a noite, a solidão, o jardim, a paisagem verde, a floresta antiga de carvalhos decrépitos [suas raízes grossíssimas saindo fora da terra] – “Danças de mãos verdes e de voltas de faúlhas” [p. 16] –, o postigo azul claro, o pátio branco. E certas transparências: a alma transparente da casa [cf. p. 16]; um ovo transparente, mas duro, intransponível [cf. p. 17].
Ainda que nem sempre seja evidente, os textos deste livro – por vezes significativamente separados cronologicamente – dialogam intimamente. No «Segundo aviso» [p. 19] [escrito entre junho e dezembro de 1964], alguém – aproximando-se – segurava na mão esquerda quatro hastes de digitalis: brancas, amarelas e vermelhas. Atrás de si, a “cidade verde do futuro” [p. 19]. Havia canteiros coloridos subindo à altura das casas; flores desconhecidas, serenamente orgulhosas do seu mistério. Depois, pousadas sobre a mesa de mármore, pareciam animais adormecidos.
Apesar de um certo estranhamento que resulta desta mundividência onírica, há uma certa inteligibilidade, uma espécie de forma significante que nos possibilita uma simpatia que, se não é identitária, é pelo menos do domínio da pertença, ou seja: convoca-nos, no limite, a um grau de pertença. Mas como interpretar estes dois enigmáticos versos?: “Religião é autorizar-se ou não,/ Os ruídos da pedra” [p. 19].
São recorrentes neste ‘Encontro na Noite’ as reiterações de imagens, de cores – esse modo vidente de observar como quem medeia, de mediar como quem observa, como se o seu corpo não fosse já um corpo, como se existisse num hiato da realidade, num intervalo desdobrado em processos de regressão, como em «Digitalis» [pp. 20-21]: “Agora deixa a rua, sobe no ar em diagonal e voa imóvel, com os braços estendidos e as palmas das mãos juntas, para tua casa. Debaixo de ti tudo desaparece como é agora e surge tal como era antigamente, antes das ruas e das casas” [p. 20].
Um tempo antes, um atalho que sobe, outeiros verdes, tufos de arbustos, digitalis: um bosque de hastes altas, grupos de flores no cimo. “Vê, agora, a tua casa vai surgir-te, verticalmente. Aqui de súbito, atrás deste outeiro” [p. 21]. E, no fim, a súplica: “Virgem, põe o meu coração sobre o teu” [p. 21].
Evocando a assunção, em «Regina Mundi» [p. 22], entre as águas negras e as árvores verdes, escuta-se o desejo de “ascender” e de “assumir”, seja como verbo transitivo [no sentido de avocar, revelar, alcançar ou admitir] ou como verbo pronominal [no sentido de declarar-se ou revelar-se]: “Assim te contemplo. E contigo me multiplico. E em ti subindo, subo também, da terra para o céu” [p. 22].
E sempre escavando as suas imagens: o fundo da lagoa, a noite, o desconhecido e o oculto, o centro da terra noturna. No final de «O primeiro amor» [p. 23], Dalila desperta quando o “galo chupa a lua” [p. 23]; mas o que persiste é a noite, a casa, o rumor dessa vida outra futura, dessa terra que se abandona – “a que não se volta mais; mas que se olha de longe, mas de que não se perde a memória” [como em «Job», pp. 24-25]. E novamente a casa, a porta, o tempo intacto e igual, a fenda, a água que – no chão da casa alheia – ondula e brilha a seus pés [como em «Encontro na noite», pp. 26-27].
A paisagem onírica que resulta desta intensa imagética é predominantemente verde, com elementos aquáticos, caminhos sagrados, necrópoles e profecias [como em «Profanação», p. 28]. Entre «Sintra» [p. 29] e «Transformação» [p. 31] encontramos água verde transparente, pórticos, vazias igrejas tridentinas, a rua da saudade, jardins sombrios, casas… e o que resta é a solidão.
Se este ‘Encontro na Noite’ se encaminha – particularmente na terceira parte: «A Potência e o Verbo» [pp. 91-192] – para uma ensaística marcadamente poética, intuitiva e tendencialmente onírica, nesta primeira parte – «O Anjo» – predomina um tom extremamente incomum que lembra a obra do extraordinário poeta venezuelano José Antonio Ramos Sucre [1890-1930].
Na «Terra primeira» [pp. 32-33] – que tem o brilho da terra perdida – encontramos a fenda [pela qual ligeiramente se sobe ao planalto lavrado], pequenos barcos de vela branca que cintilam à luz rasante, flores vermelhas desconhecidas, uma igrejinha de granito negro a encimar a cidade, a possibilidade dos homens do futuro.
A sua «Cidade intercalar» [pp. 34-35], outra cidade… esse “porto labiríntico, no meio da água vertical, profunda e transparente”, onde se moviam impercetivelmente “numerosos tigres pintalgados”. O tempo imóvel, a água sólida. A casa, de sala em sala, os armários envidraçados, a louça antiga, branca e azul. A casa que se eleva em altíssimo esporão sobre a planície, lisa e verde. Os tigres eram a imagem analógica dessa casa.
De texto em texto, numa sobreposição de imagens, algumas reiteradas como elementos integrantes da paisagem, Dalila assoma nos interstícios de poemas como «O génio familiar» [pp. 36-37], «A chamada» [p. 38] e «Jogos de água» [p. 39], deixando na superfície da página um cavalo vermelho, um misterioso inglês, palavras evanescentes; acácias, um grande cão preto; um jardim em terraços, arbustos pendentes [verdes e vermelhos], um brilho mortal e a luz do crepúsculo. Dalila sufoca e grita por socorro, mas “a Consolação, toda vestida de preto, vira as costas e muda, afasta-se lentamente” [p. 39]. E sobrevém um sentido ascensional, em espiral, tendência irresistível do seu pensamento e da sua poesia para sobrelevar-se: “Espiraliza-te no teu ser – e sobre o teu centro, ergue-te” [p. 39].
Numa linguagem cujo hermetismo deriva fundamentalmente da persistência de um estado onírico latente, as paisagens vão-se sucedendo como através de um cosmorama, entre a praia primeira e a espiral fremente que se formou do fio em fogo deitado no chão. “Em vão depois os procurei, chamei por eles: perdidos para sempre, os mortos” [p. 40]. Entre «O país vermelho» [pp. 40-41] e «Encontro marcado» [pp- 42-46]: as casas, os campos, as árvores; os caminhos brancos, o nome primeiro, a memória dos mortos, as flores primeiras, a transparência. O lugar marcado do encontro foi o mosteiro. “Mas onde foi que me separei de ti?” [p. 44], pergunta; e naquela passagem do rio mete o braço e depois o corpo todo na água, submerge. A água e as casas, o fundo da água e as casas grandes abandonadas. E o seu bestiário íntimo em desdobramento simbólico: o canário ressuscitado, as cobras na água, essas jiboias pintalgadas. O gesto do braço, a clareira do bosque, o lugar primitivo, o círculo fechado. O crepúsculo e a luz esverdeada nessa clareira soteriológica: “Subo, atirada pelo ar acima, pelo céu, até ao seu fundo. E dele, nele, de novo venho à terra, com um corpo novo (o antigo e outro), para mais um outro tempo” [p. 46].
Há um profundo sentido iniciático nestes textos de Dalila Pereira da Costa: esse modo insistentemente gerundivo de subir; a serra ocre, o bosque verde; o labirinto, a caixa de segredo, a casa do desencontro. Entre «O pavilhão da serra» [p. 47] e «O anjo» [pp. 48-49], a haste vegetal e a chama de fogo que prende e ergue o corpo; esse abraço helicoidal em que “te despojas deliciosamente de ti mesmo, penetrado desse amor incrível, num estado que é de vida e de morte” [p. 48]; o centro da terra ou o fundo do céu.
Em «Notícias» [p. 50], outra visitação: “Ele veio, e tão outro. Surgindo sempre inesperado, através de uma porta” [p. 50]. Trouxe notícias escritas com letras conhecidas, mas o sentido era desconhecido. Nas imagens perscrutavam-se “paisagens brancas de neve de dessolados arredores suburbanos, de noite, à luz fria e cortante dos revérberos” [p. 50]. «Cidade da Europa» [p. 51] e «O poderoso» [p. 52] antecedem e anunciam o «Último encontro» [p. 53]. Por aí subiu a escada estreita e sinuosa. O palácio no alto da montanha, de cubículos e sucessivos terraços imbricados; a veste amarela do fim; junto à janela, nesse processo em que conhecer é reconhecer, entre o lugar primeiro e o primeiro amor, e a consciência de que de “ti de futuro, nada mais me restaria do que pegadas” [p. 53].

Parece-me evidente que Dalila Pereira da Costa subordina a sua expressão literária às funcionalidades oraculares da sua voz mística e tendencialmente profética. Com efeito, não desobstruiu um lugar para si na História da Literatura Portuguesa. Assegura, no entanto, a continuidade com uma tradição de poetas místicos, ocasionalmente sincréticos e esotéricos, para os quais foram sempre pouco definidas as fronteiras entre literatura, pensamento filosófico e experiência religiosa. Daí as ressonâncias partilhadas com Teixeira de Pascoaes e a familiaridade filosófica, por vezes mediada, com o poeta de Amarante.
Recordando algumas fotografias que Dalila tirou na segunda metade da década de 30 – com uma Rolleicord I [Type 2] –, estes textos, escritos trinta anos depois, ganham uma intensidade ainda mais fremente, caixas de ressonância que são, não para o desvelamento daquilo que revelam, mas para o silêncio daquilo para o qual não há palavras.


DALILA PEREIRA DA COSTA | Bibliografia:
‘O Esoterismo de Fernando Pessoa’, Porto, Lello & Irmão, 1971 [2.ª ed.: 1978; 3.ª ed.: 1987; 4.ª ed.: 1996; 5.ª ed.: 2012]; ‘A Força do Mundo’ Porto, Lello & Irmão, 1972; ‘Encontro na Noite’, Porto, Lello & Irmão, 1973; ‘Duas Epopeias das Américas’, Porto, Lello & Irmão, 1974; ‘Introdução à Saudade – Antologia teórica e aproximação crítica’ [de colaboração com Pinharanda Gomes], Porto, Lello & Irmão, 1976; ‘A Nova Atlântida’, Porto, Lello & Irmão, 1977; ‘A Nau e o Graal’, Porto, Lello & Irmão, 1978; ‘Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro’, Porto, 1978; ‘Os Jardins da Alvorada’, Porto, Lello & Irmão, 1981; ‘A Cidade e o Rio’, Edições Nova Renascença, 1982; ‘Elegias da Terra-Mãe’, Edições Nova Renascença, 1983; ‘Da Serpente à Imaculada’, Porto, Lello & Irmão, 1984; ‘Místicos Portugueses do Século XVI’, Porto, Lello & Irmão, 1986; ‘Gil Vicente e a sua época’, Lisboa, Guimarães Editores, 1989; ‘A Ladainha de Setúbal’, Porto, Lello & Irmão, 1990; ‘Raízes Arcaicas da Epopeia Portuguesa e Camoniana’, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa – Ministério da Educação e Cultura, 1990; ‘Os Sonhos’, Porto, Lello & Irmão, 1991; ‘Espirituais Portugueses – Antologia’ [seleção e prefácio de Dalila Pereira da Costa e Quirino de Santa Victória, Lisboa, Fundação Lusíada, 1991; ‘Pascoaes: d’As Sombras à Senhora da Noite’, Lisboa, Átrio, 1992; ‘Corografia Sagrada’, Porto, Lello & Irmão, 1993; ‘Hora Prima’, Lisboa, Fundação Lusíada, 1993; ‘Entre Desengano e Esperança’, Porto, Lello & Irmão, 1996; ‘O Novo Argonauta [E a Ilha Firme]’, Lisboa, Fundação Lusíada, 1996; ‘D. Sebastião, El-Rei Ungido – Rei Eleito’, Lisboa, Átrio, 1996; ‘Dos Mundos Contíguos’, Porto, Lello & Irmão, 1999; ‘Os Instantes – Nas Estações da Vida’, Porto, Lello & Irmão, 1999; ‘Mensagens do Anjo da Aurora’, Lisboa, Hugin, 2000; ‘Portugal Renascido’, Lisboa, Fundação Lusíada, 2001; ‘O Sagrado no Teatro de Gil Vicente’, Sintra, Vária Escrita – Cadernos de Estudos Arquivísticos, Históricos e Documentais, n.º 11, 2004; ‘Contemplação dos Painéis’, Porto, Lello & Irmão, 2004; ‘As margens sacralizadas do Douro através de vários cultos’, Porto, Lello & Irmão, 2006.